É oficial. Após ter superado a última e derradeira prova, que além de ser última é também a única, sou, oficialmente, um verdadeiro lobo do mar.
Passo a explicar.
Foi ainda em Puerto Montt, no briefing de segurança anterior ao inicio da travessia, que a tripulação foi avisando que iriam existir alguns momentos difíceis no decorrer da viagem, e que o paramédico a bordo estaria equipado com todas as injecções necessárias para ajudar os passageiros. Logo se percebeu que as dificuldades seriam os enjoos, e a mim qualquer enjoo me assustava menos que qualquer injecção, por isso devo de confessar que estava expectante. As dificuldades maiores eram uma entrada em oceano aberto e a passagem pelo mítico Golfo de Penas. Ao contrario do que se pode pensar, Golfo de Penas deve o seu nome a um marinheiro chamado Peñas, mas como em Inglês não existe o ñ acabou por ficar Golfo de Penas. E pena em Espanhol não tem um significado muito diferente do português. Por isso, após a passagem pelo mítico ponto, todos no navio comentavam que se acabaran las penas.
Voltando atrás, o navio começou a balançar muito logo na primeira noite, ao passar o Golfo Corcovado. Na realidade não dei por nada porque estava a dormir, mas na manhã seguinte algumas pessoas comentavam que o navio tinha abanado um pouco. Mas foi no final da tarde de ontem que o abanar passou de pouco. Eu nunca tinha estado em alto mar, o que é pena, lá está de novo a pena, pois tivesse eu estado em alto mar antes e já me teria sentido um super-homem à mais tempo.
Quando, no final da tarde, a ondulação começou a aumentar e o navio a balançar cada vez mais, já eu, todos os passageiros e tripulação, tinha tomado o comprimido para o enjoo. Acontece que quanto mais a ondulação aumentava mais eu sentia que o comprimido não me iria servir de nada. Estava completamente enganado. Com as ondas cada vez maiores, foi engraçado ver que o convés e todas as áreas comuns depressa se esvaziaram. Todos desapareceram para dentro dos camarotes, e só meia dúzia de destemidos, quase todos já tontos da bebida e que por isso nem sentiam o mar, se mantinham à vista. Outros vinham até ao convés apanhar ar fresco mas depressa voltavam para dentro, para o camarote ou para as casas de banho, de onde voltavam menos brancos e mais aliviados. Eu estava com dois problemas: por um lado queria manter-me no exterior a tentar olhar um ponto fixo no horizonte e apanhar o constante ar fresco na cara, truques simples e por demais conhecidos, isto porque estava a sentir-me menos bem, ponhamos as coisas nestes termos, e estava já capaz de vomitar qualquer coisita que tinha almoçado. O outro problema é que estava a ficar com cada vez mais sono, que para os menos experienciados nestas andanças é um dos efeitos secundários dos comprimidos para o enjoo. Estava eu no convés, cada vez mais branco e encharcado em suor apesar do frio que se fazia sentir, e sentia os dois problemas a aumentar: o enjoo e o sono. Estava mesmo perto de vomitar e fui a correr para dentro, ia em direcção às casa de banho quando pensei: É pá, estou cheio de sono, vou mas é dormir. E assim fiz. Estava tão cansado e desesperado que me deitei vestido, roupa para a neve e botas incluídas, por cima da roupa da cama. Não demorou muito até adormecer, a mim e ao enjoo.
Quando acordei tudo estava calmo no barco. Ouvi o chamamento para o jantar e desci, isto porque com ou sem enjoo eu não posso é com a fome. Como não como carne, tinha à minha espera um espectacular esparguete coberto por uma pasta amarela que eu não consegui perceber o que era, nem pelo sabor, mas que se parecia muito com algo que ficaria muito ligado a esse dia. Reparei também que faltaram muitos passageiros a esse jantar. Quando eu ia começar a jantar, fui informado que o navio estava agora mais calmo pois o capitão tinha voltado para trás e lançado a ancora, não tinha entrado no mar aberto pois não tinha condições para o fazer devido à alta ondulação e tinha por isso procurado refugio no canal. Ou seja: nós íamos voltar, ainda essa noite, a tentar entrar no mar aberto, e depois passaríamos pelo famoso Golfo de Penas. Os problemas ainda não tinham sequer começado e o meu esparguete com cobertura de vomitado já ia a meio, demasiado tarde para voltar atrás, e se ele ia voltar para fora então pelo menos eu não ficava com fome. Mas é nestas alturas difíceis que se pode ver quem são os homens de verdade, os verdadeiros lobos do mar.
Depois do jantar sentei-me na sala comum a ver um filme qualquer, que nem sei o nome, que passaram para nos entreter. Nesta altura já sentia o movimento do barco: estávamos a tentar de novo a entrada no mar!
Fiquei um pouco mais a ver o filme, mas o barco balançava cada vez mais, podia até, sentado no sofá, imaginar as altas ondas lá fora que, como eu tinha visto à tarde, levantavam a proa a uns bons metros do nível da água. Acaso me faltasse a imaginação, uma criança vomitou mesmo à minha frente, lembrando-me que era altura de eu repensar a minha noite. Por esta hora eu não estava a sentir enjoo nenhum, já tinha tomado um segundo comprimido, e estava decidido a ficar assim. Subi para ao quarto e deitei-me na cama a ouvir música.
O que aconteceu depois é fácil de explicar. Fiquei cerca de uma hora deitado a ouvir música e a sentir o barco a balançar como uma casca de noz na minha banheira quando era miúdo. Não sentia enjoo nenhum. Nos intervalos entre as faixas ouvia alguns gemidos e o barulho imenso de portas a bater e objectos a rolar. Ao fim de algum tempo acabei por adormecer. Acordei já de manhã. O mar estava calmo. A minha cabine é que se tinha transfigurado. Os armários estavam aberto e a roupa espalhada pelo chão. Garrafas de água caídas e tudo num verdadeiro reboliço. Convém agora explicar que durmo com tampões nos ouvidos.
Quando desci para o pequeno-almoço, com a jovialidade roliça de quem acaba de tomar um belo duche depois de quase dez horas a dormir, encontrei um refeitório meio deserto, com algumas pessoas cabisbaixas e ensonadas, cara de quem fez uma directa e bebeu demais na noite de ano novo. Foi então que me contaram. Já tínhamos passado o mar e o mítico Golfo de Penas. A noite havia sido um inferno interminável. O barco balançou mais que bunda em noite de carnaval. Praticamente todos os passageiros se sentiram mal, vomitaram e sofreram. O paramédico andou a baixar calças e enxergar bundas que nem criança em noite de carnaval no Rio, arruinando com o stock de injecções que ainda agora não sei bem para que servem. Ainda por cima teve de aplicar injecções a homens, o que não deve ser do mais agradável. Enquanto tudo isto se passava, ao que parece, apenas um passageiro dormia calmamente e não dava conta de nada: eu!
Por isso agora sou um lobo do mar, um verdadeiro herói do sono pesado. Um predestinado para as marés. Um homem sem lugar nem poiso. O mundo é a minha casa, o mar é o meu leito. As minhas armas são: uma cama confortável, dois tampões para os ouvidos Horopax, e uma caixa de comprimidos para o enjoo que dão sono até mais não.
Sinto-me pronto para tudo. Um destemido herói dos caminhos Patagónicos. Mas na próxima, pelo sim pelo não, acho que vou tentar fazer a viagem de avião.
Chile, 5 de Setembro de 2007
Passo a explicar.
Foi ainda em Puerto Montt, no briefing de segurança anterior ao inicio da travessia, que a tripulação foi avisando que iriam existir alguns momentos difíceis no decorrer da viagem, e que o paramédico a bordo estaria equipado com todas as injecções necessárias para ajudar os passageiros. Logo se percebeu que as dificuldades seriam os enjoos, e a mim qualquer enjoo me assustava menos que qualquer injecção, por isso devo de confessar que estava expectante. As dificuldades maiores eram uma entrada em oceano aberto e a passagem pelo mítico Golfo de Penas. Ao contrario do que se pode pensar, Golfo de Penas deve o seu nome a um marinheiro chamado Peñas, mas como em Inglês não existe o ñ acabou por ficar Golfo de Penas. E pena em Espanhol não tem um significado muito diferente do português. Por isso, após a passagem pelo mítico ponto, todos no navio comentavam que se acabaran las penas.
Voltando atrás, o navio começou a balançar muito logo na primeira noite, ao passar o Golfo Corcovado. Na realidade não dei por nada porque estava a dormir, mas na manhã seguinte algumas pessoas comentavam que o navio tinha abanado um pouco. Mas foi no final da tarde de ontem que o abanar passou de pouco. Eu nunca tinha estado em alto mar, o que é pena, lá está de novo a pena, pois tivesse eu estado em alto mar antes e já me teria sentido um super-homem à mais tempo.
Quando, no final da tarde, a ondulação começou a aumentar e o navio a balançar cada vez mais, já eu, todos os passageiros e tripulação, tinha tomado o comprimido para o enjoo. Acontece que quanto mais a ondulação aumentava mais eu sentia que o comprimido não me iria servir de nada. Estava completamente enganado. Com as ondas cada vez maiores, foi engraçado ver que o convés e todas as áreas comuns depressa se esvaziaram. Todos desapareceram para dentro dos camarotes, e só meia dúzia de destemidos, quase todos já tontos da bebida e que por isso nem sentiam o mar, se mantinham à vista. Outros vinham até ao convés apanhar ar fresco mas depressa voltavam para dentro, para o camarote ou para as casas de banho, de onde voltavam menos brancos e mais aliviados. Eu estava com dois problemas: por um lado queria manter-me no exterior a tentar olhar um ponto fixo no horizonte e apanhar o constante ar fresco na cara, truques simples e por demais conhecidos, isto porque estava a sentir-me menos bem, ponhamos as coisas nestes termos, e estava já capaz de vomitar qualquer coisita que tinha almoçado. O outro problema é que estava a ficar com cada vez mais sono, que para os menos experienciados nestas andanças é um dos efeitos secundários dos comprimidos para o enjoo. Estava eu no convés, cada vez mais branco e encharcado em suor apesar do frio que se fazia sentir, e sentia os dois problemas a aumentar: o enjoo e o sono. Estava mesmo perto de vomitar e fui a correr para dentro, ia em direcção às casa de banho quando pensei: É pá, estou cheio de sono, vou mas é dormir. E assim fiz. Estava tão cansado e desesperado que me deitei vestido, roupa para a neve e botas incluídas, por cima da roupa da cama. Não demorou muito até adormecer, a mim e ao enjoo.
Quando acordei tudo estava calmo no barco. Ouvi o chamamento para o jantar e desci, isto porque com ou sem enjoo eu não posso é com a fome. Como não como carne, tinha à minha espera um espectacular esparguete coberto por uma pasta amarela que eu não consegui perceber o que era, nem pelo sabor, mas que se parecia muito com algo que ficaria muito ligado a esse dia. Reparei também que faltaram muitos passageiros a esse jantar. Quando eu ia começar a jantar, fui informado que o navio estava agora mais calmo pois o capitão tinha voltado para trás e lançado a ancora, não tinha entrado no mar aberto pois não tinha condições para o fazer devido à alta ondulação e tinha por isso procurado refugio no canal. Ou seja: nós íamos voltar, ainda essa noite, a tentar entrar no mar aberto, e depois passaríamos pelo famoso Golfo de Penas. Os problemas ainda não tinham sequer começado e o meu esparguete com cobertura de vomitado já ia a meio, demasiado tarde para voltar atrás, e se ele ia voltar para fora então pelo menos eu não ficava com fome. Mas é nestas alturas difíceis que se pode ver quem são os homens de verdade, os verdadeiros lobos do mar.
Depois do jantar sentei-me na sala comum a ver um filme qualquer, que nem sei o nome, que passaram para nos entreter. Nesta altura já sentia o movimento do barco: estávamos a tentar de novo a entrada no mar!
Fiquei um pouco mais a ver o filme, mas o barco balançava cada vez mais, podia até, sentado no sofá, imaginar as altas ondas lá fora que, como eu tinha visto à tarde, levantavam a proa a uns bons metros do nível da água. Acaso me faltasse a imaginação, uma criança vomitou mesmo à minha frente, lembrando-me que era altura de eu repensar a minha noite. Por esta hora eu não estava a sentir enjoo nenhum, já tinha tomado um segundo comprimido, e estava decidido a ficar assim. Subi para ao quarto e deitei-me na cama a ouvir música.
O que aconteceu depois é fácil de explicar. Fiquei cerca de uma hora deitado a ouvir música e a sentir o barco a balançar como uma casca de noz na minha banheira quando era miúdo. Não sentia enjoo nenhum. Nos intervalos entre as faixas ouvia alguns gemidos e o barulho imenso de portas a bater e objectos a rolar. Ao fim de algum tempo acabei por adormecer. Acordei já de manhã. O mar estava calmo. A minha cabine é que se tinha transfigurado. Os armários estavam aberto e a roupa espalhada pelo chão. Garrafas de água caídas e tudo num verdadeiro reboliço. Convém agora explicar que durmo com tampões nos ouvidos.
Quando desci para o pequeno-almoço, com a jovialidade roliça de quem acaba de tomar um belo duche depois de quase dez horas a dormir, encontrei um refeitório meio deserto, com algumas pessoas cabisbaixas e ensonadas, cara de quem fez uma directa e bebeu demais na noite de ano novo. Foi então que me contaram. Já tínhamos passado o mar e o mítico Golfo de Penas. A noite havia sido um inferno interminável. O barco balançou mais que bunda em noite de carnaval. Praticamente todos os passageiros se sentiram mal, vomitaram e sofreram. O paramédico andou a baixar calças e enxergar bundas que nem criança em noite de carnaval no Rio, arruinando com o stock de injecções que ainda agora não sei bem para que servem. Ainda por cima teve de aplicar injecções a homens, o que não deve ser do mais agradável. Enquanto tudo isto se passava, ao que parece, apenas um passageiro dormia calmamente e não dava conta de nada: eu!
Por isso agora sou um lobo do mar, um verdadeiro herói do sono pesado. Um predestinado para as marés. Um homem sem lugar nem poiso. O mundo é a minha casa, o mar é o meu leito. As minhas armas são: uma cama confortável, dois tampões para os ouvidos Horopax, e uma caixa de comprimidos para o enjoo que dão sono até mais não.
Sinto-me pronto para tudo. Um destemido herói dos caminhos Patagónicos. Mas na próxima, pelo sim pelo não, acho que vou tentar fazer a viagem de avião.
Chile, 5 de Setembro de 2007
1 comentário:
aprovado, és um lobo do mar! eu também quero fazer um teste desses! E quando chegaste a terra, tudo bem? A Dânia sentia-se mal depois de chegar a terra. Já sabes, quando quiseres mudar de vida podes sempre ser pescador, visto que já não há mais nada que descobri...:)
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